terça-feira, 10 de maio de 2011

O jordano


Este fim de semana soubemos de um atentado à bomba em Baghdad com dezena e meia de mortos e mais de trinta feridos, mais uma bomba explode no Iraque, de tal maneira se vem tornado banal esta mortandade que quando a notícia nos é dada pelos telejornais já pouca gente vira a cabeça para ouvir. Gostava de perceber quando vai acabar esta coisa que o Sr. Bush iniciou em 2003 por causa das míticas armas de destruição maciça e, sobretudo gostava de saber como vai acabar. Algumas pessoas são capazes de se lembrar que isto não começou em 2003 mas sim em Agosto de 1990 quando o Iraque invadiu e ocupou o Kuwait num abrir e fechar de olhos e sem perguntar nada a ninguém, segundo o senhor Saddam Hussein porque o vizinho lhe andava a roubar o petróleo nas explorações que mantinha junto da fronteira no campo de Rumaila e de provocar a baixa do preço do petróleo ao produzir e vender mais que a cota estabelecida pela OPEP. Tanto quanto julgo saber a verdadeira razão teve a ver com uma dívida que o Iraque contraiu junto do Kuwait no valor de 80 mil milhões de dólares quando da guerra Irão-Iraque nos anos 80 (já vi várias versões desta quantia entre os 10 mil milhões e 80 milhões mas mais sobre esta última quantia) e de antigas reivindicações territoriais do Iraque sobre o Kuwait que remontavam aos anos 30 quando da independência do Iraque e das fronteiras desenhadas a régua e esquadro pelos britânicos intencionalmente limitando o acesso dos iraquianos ao mar para não ameaçar os interesses britânicos no Golfo Pérsico – tudo boa gente. A ONU com uma rapidez inaudita condenou a invasão e autorizou o uso da força para fazer retirar os iraquianos e em Janeiro de 1991 uma força comandada por um general americano de nome impronunciável, Norman Shwarzkopf invadiu o Kuwait e iniciou a Operação Tempestade no Deserto que terminou dois dias depois com a derrota do Iraque. Não, não vou comparar os 80 mil milhões do Sr. Saddam Hussein com os nossos 78 mil milhões emprestados sob a batuta da tríade das sandes de fiambre, podíamos realmente invadir a Finlândia que não queria entrar com a parte que lhe cabe das massas que aí vêm, mas aquilo por lá é frio que se farta além de longe como o caraças e não ia dar jeito nenhum, só por isso não advogo a invasão da Finlândia.

Voltando à Guerra do Golfo de 1991, a invasão deu-se em 1990 (Agosto) e em Setembro desse ano a AMI começou a preparar uma missão de emergência aos campos de refugiados que entretanto iam nascendo na fronteira Jordânia-Iraque. A AMI contactou vários médicos e enfermeiros para que dela fizessem parte, tendo o Fernando Nobre (esse mesmo) falado comigo para coordenar a missão. Partimos em Setembro num C-130 da Força Aérea, que estava integrado na colaboração que Portugal deu à coligação que combatia os iraquianos, via Cairo até Amman na Jordânia. No Cairo uma enorme confusão de autorizações de voo fez com que os egípcios nos pusessem a aguardar na placa do aeroporto sob um calor daqueles a sério horas infindas e depois de uma boa sauna e de uma atribulada soneca debaixo da asa do avião lá pudemos partir para o nosso destino final – Amman, na capital da jordana depois de um curto tempo alojados na casa que a AMI alugou para servir como base operacional e que curiosamente se tratava de um bloco de apartamentos que dava pelo romântico nome de Gôndola, partimos numa pequena coluna de jipes e camiões para a fronteira jordano-iraquiana. O destino era uma localidade chamada Ar Ruwayshid onde era suposto dar apoio com equipamento (medicamentos) ao hospital local e manter contactos com a estrutura de saúde que o Reino da Jordânia mantinha naquela localidade. A viagem até Ar Ruwayshid demorou horas infindas pelo meio de um deserto escaldante e algumas localidades dispersas, uma das quais Azraq que durante a I Guerra Mundial foi uma das bases do conhecido Thomas Edward Lawrence o famoso Lawrence da Arábia que se dedicava a dar conta do juízo aos turcos estourando-lhes os combóios. Finalmente a chegada ao destino, descarregaram-se os camiões com alguma ajuda de gente local mas sobretudo à custa dos nossos braços sob o olhar entre o desconfiado e curioso de alguns homens mais velhos que desfiavam uma espécie de terço na mão e iam comentando o desenrolar da operação. Seguiu-se o alojamento da equipa todos estávamos estafados e ia saber bem um banho e umas horas de sono pelo que nos dirigimos ao hotel da área, o Shatt Al-'Arab que se situava mesmo junto à fronteira, aí ficamos a saber que não se alugavam quartos mas sim camas pelo que ficamos numa enorme camarata no último andar com colchões dispostos no chão muito bem arrumadinhos e com um terraço magnífico com vista para o deserto e para a fronteira mesmo ali a uns 200 metros, nada mau, o chuveiro numa casota no terraço servia optimamente e depois do chuveiro uma boa soneca e esperar pelo próximo dia em que íamos iniciar a actividade no campo de refugiados. O campo de refugiados situava-se entre as fronteiras da Jordânia e do Iraque numa no man’s land entre arames farpados a uns bons trinta quilómetros do hotel, assim pela manhãzinha partimos em dois carros até ao campo Mercy atravessando a fronteira jordana e depois já próximo do campo um posto de controle onde soldados (?) barbudos com cara de poucos amigos nos lançavam olhares pouco tranquilizadores. Depois foi o campo, a montagem das tendas, a assistência aos refugiados que vinham aos magotes durante a noite empilhados em camionetas de passageiros até aquele campo e outros dois geridos pela Cruz Vermelha e pelos Médicos sem Fronteiras, era uma mistura de palestinianos, filipinos, cingaleses, bangladeshis, uma confusão de línguas e povos que tinham a sua vida no Kuwait servindo e trabalhando para o sheiks locais e de repente se viram encurralados pela invasão iraquiana optando por fugir, deslocando-se numa viagem de milhares de quilómetros. À noite novamente o regresso ao hotel  Shatt Al-'Arab, à cavaqueira com os vários jornalistas que nos acompanhavam, aos kebabs, e à nossa camarata que de dia para dia se tornava cada vez mais convidativa. E os dias iam decorrendo na mesma rotina hotel-campo de refugiados-hotel passando pelos soldados façanhudos do posto de controle a seguir à fronteira que todos os dias nos olhavam desconfiadamente, o que motivava comentários pouco tranquilizadores entre nós – “um destes dias estes tipos ainda nos fazem uma partida” e cada vez que se passava naquele local nós próprios nos encolhíamos instintivamente. Passamos dias e dias por ali até que, no regresso de um dia particularmente duro em que tivemos a chegada de quase mil refugiados, muitos em condições deploráveis com sequelas de acidentes durante a viagem, quando chegamos aos soldados no posto de controle um deles particularmente mal encarado, careca, com uma barba enorme emaranhada e suja levantou a mão segurando uma espingarda e pôs-se à frente do carro - “É agora” pensei eu. Juntamente com outro soldado deu a volta ao carro, espreitou para a parte de trás onde uma médica e uma enfermeira se encolhiam, abriu sem cerimónia o porta bagagens, mandou sair o condutor com quem trocou meia dúzia de palavras ininteligíveis e dirigiu-se a mim no banco da frente, sempre de arma em punho. Confesso que não foi das situações mais confortáveis da minha vida e já me via atirado para uma qualquer masmorra no deserto cercado de barbudos vestidos de djellabas, aqueles balandraus que se viam por todo o lado e armados até aos dentes. O homem debruçou-se na janela do carro olhou-me e diz num impecável inglês: - “Are you the doctor?”, eu meio a tremer “Yes”, diz o nosso homem (traduzindo): - “Meu Deus felizmente! Há vários dias que ando a pensar pedir-vos para parar mas não queria incomoda-los”. Não nos queria incomodar ??? Fiquei completamente confuso e tolhidinho da língua. – “Não nos queria incomodar como?”
Diz o barbudo soldado:
- Sim, sabemos o trabalho que estão a fazer. Mas eu tenho um problema para que precisava de pedir a sua ajuda
- Então o que se passa? – Começava a recompor-me do susto…
- É que tenho o cabelo todo a cair – meteu a careca na janela do carro – e queria ver se me podiam dar uma ajuda nisso
Entreolhei as minhas companheiras no carro sem saber muito bem o que fazer. O tipo era careca que nem um ovo e no meio de lado nenhum manda parar o carro para pedir remédio para a queda do cabelo??? Num daqueles repentes que às vezes nos dão nos apertos fiz o ar mais sério do mundo:
- Mas claro. Vamos já tratar disso.
Saí do carro, abri o porta bagagens onde tínhamos alguns medicamentos que nunca deixávamos no campo e comecei a pensar que raio ia eu dar ao careca barbudo. Remexi nas caixas e nada, soros, seringas, injectáveis, sistemas, pomadas. Pomadas ? Ora aí está pomadas! A caixa tinha variadíssimas pomadinhas desde anti alérgicos a analgésicos e, no meio daquilo uma pomada qualquer numa embalagem linda azul claro, nem mais, nada como uma pomadinha para fazer crescer o cabelo aos carecas.
- Aqui tem. Esfrega isto na cabeça de manhã é à noite durante duas semanas depois descansa mais duas e volta a aplicar. Vai resultar certamente.
O barbudo careca desfez-se em agradecimentos, fez uma continência impecável, mostrou a pomada aos companheiros disse qualquer coisa ao condutor e fez-nos sinal para seguirmos.
Durante mais uma semana passamos pelo posto de controle e tínhamos sempre direito a uma espalhafatosa continência dos soldados e sempre que o careca lá estava agitava no ar a bisnaga de pomada que eu, salvador dos carecas, lhe tinha dado.
Não sei o que o jordano pensa hoje de um sujeito, que num dia longínquo de 1990 lhe mandou besuntar a cabeça com pomada, no meio de lado nenhum no deserto de Ar Ruwayshid e vou ficar com uma eterna dúvida:
 – Será que o cabelo lhe voltou a crescer?

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